[...] no inicio dos anos 1960, quando, uma vez por semana, ele ia à
nossa casa nos dar aulas de pintura, “Inventa!”, repetia ele, quando, diante de
uma cartolina vazia, perguntávamos o que fazer.[i]
Uma
trajetória do olhar. Telas reviradas do avesso. Pinturas do avesso. Inventar a
pintura.
Éder Roolt vê
pintura em tudo e busca com isso este “estado inventivo” dito por Hélio
Oiticica.
Engenheiro químico
de formação, não consegue separar as coisas, melhor, gosta de separar e
desconstruir a matéria que compõe o mundo. O mundo que compõe a pintura.
Evidentemente
que na pintura já aconteceu de tudo que se possa imaginar de temas, formas de
pintar e não pintar. Artistas chegaram até a implodi-la (não foi literal), como
fizeram os cubistas. Outros artistas tentaram acabar com a pintura de cavalete
e de quadro, como o fez Piet Mondrian nas primeiras décadas do século XX, em que
extrapolou com suas pinceladas as bordas da tela resvalando para a parede que
servia de apenas de apoio ao retirar a moldura e pintar as laterais da mesma.
A história da
pintura é de longa data, de séculos, se não milenar, e em toda a sua trajetória
passou por grandes transformações de acordo com a sociedade e às épocas.
De pinturas
planas sem profundidade com a figura de perfil achatado e sem perspectiva foram vistas no Egito Antigo.
Para as que imitavam a natureza, os pintores trouxerem profundidade para tela no
Renascimento e no Romantismo europeus. Dos expressionistas aos impressionistas até
as mais puras pinturas como a tela pintada sem marcas de pincéis, gestos do
artista ou feitas com uma única cor, como foi à maneira de pintar dos
suprematistas e mais tarde dos minimalistas, podia ser preto sobre preto, branco
sobre branco, vermelho sobre vermelho e até mesmo a tela sem pintar, virar uma pintura.
Ou ainda, na action painting dos anos
1950, em que se misturava todas as cores com os artistas munidos de pincel ou
sem o pincel. Foram feitas pinturas com vassoura, com pá, com rodo ou apenas
com o gesto de jogar a tinta da lata direto na lona.
De grandes
dimensões a ponto de as paisagens retratadas se transformarem em verdadeiros
abismos vertiginosos onde o espectador podia mergulhar para pinturas minúsculas
de se ver com lupa. Estas foram vistas principalmente na Holanda dos séculos
XIV e XV. São perfeitas na sua fatura ao retratar o homem e a natureza quase fotográficos
em tempos que a máquina de tirar fotos ainda não existia.
Vieram também
as pinturas perfeitas e as imperfeitas, propositalmente, na execução como as do
jovem artista paulista Henrique Oliveira que cobre áreas no formato de telas com
chapas de madeira descartada com os matizes naturais da ação tempo sobre estas
placas. Depois passou também para as coloridas artificialmente de maneira a
conseguir sutis variações cromáticas.
Outras eram bem
pintadas na busca de domínio da técnica. Outras mal pintadas de propósito aconteciam
casualmente e poderíamos chama-las de pinturas acidentais. Pinturas que nem são
pinturas, apenas planos de material sintético industrializado que funcionam como
campos de cor. Como as do artista paulista Carlos Fajardo da década de 1970.
Trabalhos que nem poderíamos chamar de pintura já que são apenas superfícies de
fórmica colorida.
Aconteceu e
acontece de tudo na pintura de tal maneira que nos levou a crer em determinado
momento que tínhamos chegado no seu esgotamento e, até mesmo, foi sugerido o
seu desaparecimento.
Nada disso
aconteceu. Não é isso o que vemos na arte contemporânea. A pintura continua
forte e presente na produção atual. Temos artistas que se dedicam a investigar
a linguagem pictórica trazendo novos questionamentos para a pintura. Em alguns
casos, reinventando-a.
É o que o
artista Éder Roolt busca. Sua técnica é pintar realisticamente os seus temas
criando um simulacro entre a realidade que se vê na tela e aquilo que o
observador de fato enxerga.
Esta sua
insistência, pintar realisticamente, e digo isto positivamente, não faça muito
mais sentido hoje, já que pintura perdeu esta função com o advento da
fotografia. Antes a pintura tinha que ser um retrato da realidade. Hoje não
mais. O artista se desobrigou dessa função. E é esta a ousadia do artista ao
trabalhar com a realismo nas suas pinturas, esculturas e desenhos. Ousa
desafiar em pleno século XXI o que se entende por uma pintura contemporânea ao
querer com sua técnica muito estudada e que prima pela busca da perfeição, mudar
a perspectiva do ponto de vista do observador usando de técnicas tradicionais. Cria
um primeiro plano, um segundo e um terceiro dentro de suas pinturas para dar a
noção de profundidade. Mas quando pinta o plástico bolha que simula “embalar”
suas pinturas, cria um quarto plano, rompendo com a tradição da pintura de ter
apenas três planos. O que se vê de fato quando pinta o quarto plano, este
funciona como uma pele que acaba por anular a noção de profundidade trazida
pelos primeiros planos.
Há uma busca
de refinamento em sua pintura. Há estudo. Há insistência nesta busca da pintura
perfeita que simula a realidade e que nos confunde. Aquilo que se vê não é bem
o que se vê conforme o ângulo ou a distância que se observa o seu trabalho.
Muitos
artista já o fizeram em outras épocas e outros também o fazem na atualidade.
Refiro-me aqui como exemplo às obras de Iran do Espírito Santo e Hildebrando de
Castro. Artistas que são referência para Éder Roolt. Embora os três artistas
trabalhem o realismo ou hiper-realismo cada um à sua maneira. Os três têm
pesquisas e interesses diferentes. Tanto na forma de pintar, como na escolha temática
ou ainda na sua maneira de provocar o nosso olhar. No caso de Éder Roolt, suas
pinturas não são exatamente o que vemos ou imaginamos ver.
Os dadaístas,
os surrealistas, os cubistas, os abstracionistas e até mesmo os figurativistas,
fizeram algo inovador, sem dúvida. Desde pintar como se via imitando a natureza,
até o artista norte-americano Jackson Pollock que pintou com o simples gesto de
jogar baldes de tinta sobre a tela estendida no chão.
Teve até os
que não se propunham a pintar. Queriam pintar o nada. Mas o nada é impossível,
restou então para o artista ítalo-argentino Fontana, simplesmente rasgar a tela
pintada.
Roolt faz suas
pinturas e esculturas de forma bastante rigorosa e obsessiva na busca da
perfeição. Uma pintura que cria efeitos de realidade ao imitar, por exemplo, o
amassado do papel celofane. Pinta o plástico bolha que embala uma tela de tal
maneira que num primeiro olhar pensamos estar de fato diante de uma tela
embalada com este material. E é de fato. É a matéria real transformada em
pintura.
Uma outra
dessas “pinturas”, usa o fundo de uma tela como frente embalada por um plástico
“protetor” caracterizando este que seria o fundo, na frente da tela que vai
ainda apoiada sobre duas latas pintura. O plástico transforma-se em uma
película que dá uma preciosidade à tela vazia. As latas por sua vez, são
esculturas de madeira pintada que mimetizam latas verdadeiras.
Estes
trabalhos de Éder tratam da visão em paralaxe ou seja, o que vemos não é bem o
que vemos. Vemos duas coisas que não correspondem a realidade. O que vemos é
uma pintura da pintura ou uma pintura dentro de uma pintura que mimetiza o
fundo de uma tela ou uma lata.
Em outro caso, a frente
que seria a pintura, que não existe, é o fundo da tela. O fundo é a frente e o que
vemos é a pintura do fundo da tela. Parece confuso mas é simples, e é para nos
confundir o que Éder Roolt faz. Pinta a madeira e a dobra da tela que compõe o
fundo de uma tela e expõe como o fundo de uma pintura. Um fundo de uma tela é a
pintura dependurada na parede. É o que vemos. É um truque que cria uma ilusão
ótica. A ilusão de estarmos vendo uma tela virada de costas para a parede, nada
mais do que isso. O estranhamento se dá ao nos depararmos com o fundo da tela
pintado que mimetiza o mesmo fundo.
O interessante deste
trabalho é nos levar a pensar ou pintar com a mente a pintura que não vemos e
que estaria na frente do fundo da tela exposta. O que estaria virado para a
parede é uma tela em branco. A pintura que supostamente estaria ali existe
apenas na nossa imaginação que sempre busca completar as coisas. Sempre que nos
deparamos com o vazio buscamos preenchê-lo.
Uma pintura que só existe
na mente de quem observa. Cada um imagina a pintura que desejar.
Quando se vê o trabalho a
tentativa é de querer saber se há ou não uma imagem na suposta frente da tela.
O artista deixa vestígios nas laterais da pintura, o que induziria ainda mais a
esta pintura imaginária.
Em um primeiro olhar, sem
perceber do que se trata, pensamos ver apenas uma tela dependurada de costas
para quem vê. Mas não é. Trata-se de fato de uma pintura. Quando falo tela e
pintura é porque o artista trabalha na duas fases de uma pintura propriamente
dita. Uma em que a tela vista é só o fundo da tela vazia no que seria a sua
frente. Ele pinta o fundo da pintura e as laterais como se fossem parte de uma
pintura virada de frente para a parede. Mas a frente está em branco ou é o
fundo de fato da tela. Não existe nada nesta face a não ser o próprio fundo. As
laterais pintadas dão a ideia da existência de uma pintura que se estenderia
para à frente. Simples. O trabalho fica nas adjacências do surreal.
A segunda é a
própria mimetização de um fundo de uma tela ainda em branco. A superfície foi pintada,
como se estivesse virada de costas na parede. Pensamos ver uma tela pintada de
fundos. Nada mais do que isso. Mas não se trata de uma tela pintada virada de
fundos e sim de uma pintura como se a tela fosse vista pelo fundo.
Parece ter
ficado complexo o que descrevo insistentemente até aqui, mas ao ver os trabalhos
do Eder Roolt fica tudo tão claro que não é nada difícil compreender o seu
processo artístico quando olhamos para as outras séries de pinturas e desenhos
que tem feito, torna-se mais fácil de entender do que se trata. Telas pintadas
que enganam o nosso olhar desatento. Só percebemos o que está pintado quando
fixamos o olhar e prestamos atenção no que estamos observando, trata-se de uma
obviedade.
O olhar torna-se hoje um exercício difícil. É apenas o olhar superficial que pouco vê e em perspectiva para a tela que só percebemos do que se trata depois de um tempo de observação. Trata-se de pinturas que imitam o fundo da tela, as dobras do papel celofane ou plástico bolha.
Em outra
série de desenhos, Eder Roolt simula a realidade ao inventar guloseimas sobre o
papel. Balas, bombons e doces são pintados na técnica hiper-realista. Seduzem
pela forma e cor. São vivos. Parecem de verdade tal a perfeição do desenho. São
delicados e sedutores. Dá vontade de pegar mas são apenas desenhos no plano do
papel.
É um jogo do
artista. Os desenhos embora o plano do papel seja evidente, parecem
tridimensionais. Parece existirem de verdade sobre a folha de papel. Parecem
tomar volume. Se tornam volume. Tornam-se desenho. Nos outros casos anteriores,
tornam-se pintura. É de pintura que estamos tratando.
Ricardo Resende
Mestre em História da Arte
pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), tem
carreira centrada na área museológica. Trabalhou de 1988 a 2002, entre o Museu
de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo e o Museu de Arte Moderna de
São Paulo, quando desempenhou as funções de arte-educador, produtor de
exposições, museógrafo, curador assistente e curador de exposições. Desde 1996,
é curador do Projeto Leonilson. De março de 2005 a março de 2007, foi
diretor do Museu de Arte Contemporânea do Centro Cultural Dragão do Mar de Arte
e Cultura, em Fortaleza, no Ceará. De Janeiro de 2009 a junho de 2010, foi
diretor do Centro de Artes Visuais da Fundação Nacional das Artes, do
Ministério da Cultura. Atualmente é o diretor geral do Centro Cultural São
Paulo.
Em 2011 foi curador das
mostras retrospectivas Sob o Peso dos Meus Amores, do artista Leonilson, no
Itaú Cultural e Sérvulo Esmeraldo, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em São
Paulo. Ainda em 2011, foi o curador geral do Arte Pará – Ano 30, em Belém do
Pará. Em 2012 foi curador da mostra retrospectiva Sob o Peso dos Meus Amores,
do artista Leonilson, na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre.
[i]
VALENTIN, Andreas, VALENTIN, Thomas. Leve como o ar – Rio/Nova York, 1974.
Folha de São Paulo – Arquivo Aberto/Memoria que viram Histórias. Ilustríssima:
São Paulo, 11 de Maio de 2014, pag. 9.
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